Anna Queiroz
A dinâmica
psíquica na obesidade: Por que se “constrói” um corpo obeso?
A obesidade é um
sintoma que se inscreve no corpo e se caracteriza pelo excesso de gordura
corporal, sendo considerada uma doença crônica.
Para a medicina,
o excesso de peso se desenvolve quando ocorre algum problema no sistema
neuro-endócrino.
Outro fator médico
responsável pelo aumento de peso são os estados ansiosos ou depressivos, que
provocam uma diminuição no depósito de neurotransmissores cerebrais,
principalmente a serotonina e a noradrenalina, desencadeando uma hiperfagia, que
significa comer exageradamente, gerando uma “obesidade reativa”, principalmente
em indivíduos predispostos geneticamente. No código mundial de saúde, esta
patologia de comportamento é definida como hiperfagia psicogênica.
Porém, com as
dificuldades do obeso emagrecer ou se manter magro, observou-se a complexidade
da doença, não apenas se atribuindo aos fatores biológicos e genéticos o seu
desencadeamento. Conseqüentemente, a obesidade é definida como uma doença de
origem multifatorial.
Segundo Loli
(2000), as causas do aumento de peso são definidas em sete modalidades:
genéticas, neuro-endócrinas, medicamentosas, inadequação dietética, inatividade
física, ambiental e cultural, psiquiátricos e psicológicos.
Sob as óticas
sociológicas, antropológicas e culturais, as transformações ocorridas no
decorrer da história da civilização humana propiciaram o aumento da obesidade.
A invenção da
culinária foi significativa para a humanidade. O fogo é considerado um elemento
transformador, pois a partir do seu domínio os indivíduos se agruparam visando
a sua manutenção e a obtenção de seus benefícios, tais como: dar luz e calor,
proteger contra pragas e predadores, e o cozimento dos alimentos. O fogo também
tornou a comida mais saborosa de se ingerir, aumentando o seu consumo.
As relações
sociais se intensificaram a partir do ato de cozinhar e ao realizar as
refeições em conjunto, com horários de se alimentar pré-estabelecidos.
A ritualização
da alimentação propiciou a construção de grupos sociais e um maior entrosamento
entre os indivíduos, estabelecendo as relações interpessoais mais estreitas.
Após a revolução
industrial, com a racionalização e mecanização dos trabalhos, refletiu-se em mudanças
nos hábitos alimentares e, conseqüentemente, nas estruturas familiares e
sociais.
O ritmo de vida
moderna levou à prática de refeições mais simples. A distância entre a casa e
local de trabalho gerou a impossibilidade de se realizar a alimentação com a
família, e a desritualização da refeição.
Com o aumento do
fast-food, e com a refeição delivery o sujeito contemporâneo tem
mais acesso aos alimentos e maior facilidade em adquiri-los. Ocorre nos dias
atuais uma espécie de comer individualizado, fazendo com que se coma mais, propiciando
ganho de peso.
O alimento
perdeu a intensidade do seu valor simbólico. No ritmo de vida atual, tudo
“fast”, propiciou uma desconexão na relação do indivíduo com a alimentação, sendo
a comida apenas comida.
Para a gastronomia o comer é considerado como
uma fonte de satisfação.
O gastrônomo e o
chef de cozinha preocupam-se com os sabores, texturas e odores. Os cenários
aonde são realizados as refeições podem ser elaboradas, com velas, cores e luz,
deixando um ambiente acolhedor. Há uma preocupação com os alimentos e com o que
comer. Porém, o que predomina no cotidiano da sociedade pós-industrial é a
desritualização do alimento, propiciando o aumento da obesidade e de
transtornos alimentares.
Quais seriam
outros fatores que contribuem para o emergir crescente da obesidade no mundo
contemporâneo?
Sob a ótica da psicologia, a obesidade é
considerada a partir de fatores desencadeadores do sintoma e os decorrentes do
indivíduo apresentar um corpo obeso.
É fundamental
questionar o porquê um sujeito “constrói” um corpo obeso. Qual é a função desse
sintoma, sob os aspectos psicológicos?
Deve-se
verificar o momento em que se desencadeou a obesidade para o sujeito, ou se
perdeu o controle do peso, pois emoções vivenciadas e não elaborados em
determinadas etapas da vida podem estar correlacionadas com o emergir do quadro
clínico.
Constatar os
aspectos psíquicos envolvidos na obesidade é uma possibilidade do sintoma
perder sua função, auxiliando o processo de emagrecer, e impedindo futuramente ocorrer
o reganho de peso.
A literatura
considera alguns aspectos que podem ser os desencadeadores do aparecimento da
sintomatologia obesidade.
Para Kaufman
(2005), a obesidade é um mecanismo de defesa, ou seja, o tecido adiposo tem
como função ser a camada protetora frente ao mundo externo, “um muro de carne
entre si e os outros”. Quando o indivíduo tem a estrutura egóiga fragilizada, e
não apresenta recursos internos para lidar com o mundo externo e interno, isto
é, com suas próprias emoções, a “capa de gordura” passa ser a proteção (Dahlke,
1996; Loli, 2000; Woodman, 1980).
Outro
fator psicológico relevante na obesidade é a desafetação. Quando ocorre a
mobilização de um sentimento, porém não o consegue identificar, e
conseqüentemente elaborar, esta emoção vivenciada gera um estado de tensão.
Para aliviar a tensão, ocorre um investimento em uma ação. No caso do indivíduo
obeso, o ato de comer é a ação. (Loli, 2000). O indivíduo passa para uma
espécie de acting out, visando um
alívio no circuito pulsional. Há uma excitação, geradora de tensão, e a
possibilidade de aliviar o mal-estar desencadeado é a para-excitação, que são estratégias,
como o investimento em objetos (comida, bebidas, drogas), propiciando o alívio
da tensão.
De uma perspectiva psicológica, apresentar
um corpo obeso reflete no psiquismo do indivíduo, gerando outros problemas
emocionais.
Com o ganho de peso e o aumento da massa
corpórea, ocorre uma negação da dimensão do corpo, levando a uma distorção da
imagem corporal, principalmente em indivíduos obesos mórbidos.
O
corpo do obeso limita a movimentação dando a sensação de ser uma prisão,
principalmente pelo fato das estruturas do mundo externo não serem adaptadas às
pessoas gordas.
Com
receio de ser rejeitado, o obeso passa a ter uma postura de agradar demasiadamente
a demanda do outro, tornando-se o gordinho simpático, ou se fecha para o mundo
e vive mais as fantasias e sonhos que a sua própria realidade.
Por não conseguir emagrecer, visando
compensar a sensação de fracasso, o obeso tenta realizar algo de valor, para
ser reconhecido.
Na ótica da
psicanálise, quais seriam os fatores que contribuem para o surgimento e a
manutenção do sintoma obesidade?
A psicanálise
considera o sintoma como o resultado de um conflito, levando a paralisação do
desejo. Como
o sintoma é um significante para o sujeito, a construção da teoria sobre o seu
sofrimento deve ser realizada pelo próprio paciente. A relação com o sintoma tem um sentido. Deve-se
convocar um posicionamento subjetivo. É importante salientar que cada paciente
reage a sua maneira às experiências, pois as reações subjetivas são únicas.
A psicanálise enfatiza a existência de um
sujeito inconsciente, que não está submetido a um determinismo genético,
cultural e familiar. (Elia; 2004).
Há um corpo biológico, com predisposições genéticas.
Mas não é esse aspecto que definirá se um sujeito é ou será obeso. Constatamos
em muitas famílias alguns apresentarem excesso de peso e outros não. Porém,
observa-se em outras famílias predominar a obesidade em quase todos os membros.
Então, como explicar a existência do sintoma em toda uma família, se a genética
é apenas um gatilho, uma predisposição, não um aspecto definidor para o
desencadear da obesidade?
A marca, o
carimbo, como diria Lacan. Ao se escrever um romance familiar, a referência
pode ser uma sintomatologia, inerente a quase todos os membros da família. Para
pertencer àquela família, precisa possuir determinado sintoma, comum a todos. (Wartel;
1990).
Outra possibilidade
de se manter o romance e o mimetismo familiar é a identificação com uma
característica ou um sintoma existente em sujeitos membros de um núcleo
familiar, considerado um objeto amado, e que foi perdido. É “um ensaio de
presentificação do traço unário. Parece produzir-se aí um efeito orgânico da
imagem do semelhante em relação com a perda, abandono, ou separação da pessoa
amada”. (Guir, 1990, p55).
Porém, ao se
identificar às questões inerentes ao sintoma obesidade para o sujeito, como,
por exemplo, percebendo-se que pode pertencer a uma estrutura familiar sem
necessariamente ter uma patologia que sinaliza a marca daquela família, auxilia
a abandonar a posição sintomática.
A
partir da percepção do sujeito inconsciente, superando um determinismo
biológico, cultural e familiar, conclui-se que os aspectos emocionais,
conscientes ou inconscientes, envolvidos na obesidade, são extremamente
relevantes. Se o sujeito obtém um ganho secundário com o sintoma obesidade, se
justifica muitas vezes não conseguir emagrecer, ou voltar a engordar.
Observa-se
freqüentemente nos relatos de pacientes obesos alguns aspectos significativos,
importantes de se elaborar no tratamento analítico.
O alimento passa
a atender, não as necessidades nutricionais, mas as necessidades psíquicas. Há
uma tentativa de preencher um vazio interior com a comida.
Porém, a
problemática não está no vazio, na falta, e sim no excesso. A sensação de
mal-estar mobilizado pela falta é o que possibilita o indivíduo a ir de
encontro com a vida. A questão é o que se faz com o vazio. Ou o preenche com
comida, bebida, drogas, sendo um vazio improdutivo, ou o transforma em um vazio
fértil, onde se produz algo útil e criativo. O que vai marcar a vida de cada um
é o que vai se fazer com o mal-estar frente à falta.
O mal-estar se
estabeleceu a partir do momento em que o ser humano se inseriu na cultura, se
submetendo às normas e regras, viabilizando a convivência social. Mas, essa
entrada na civilização levou a viver uma perda dos instintos, instituindo-se
uma insatisfação permanente. (Freud, 1930 ).
Outro aspecto
relevante é a dificuldade que o sujeito contemporâneo apresenta em simbolizar,
e utiliza-se do corpo como rascunho das emoções. Apresentando dificuldade em
simbolizar, o sintoma é “uma nova nomeação, uma escrita, um traço, uma marca
aplicada sobre o objeto que é o corpo próprio”. (Guir, 1990).
A inclusão do sujeito na ordem simbólica ocorre a partir de uma
intervenção estruturante na relação mãe e bebê. O primeiro objeto de desejo da criança,
independente do sexo, é a mãe. É necessário que se estabeleça um corte
simbólico nesta relação, possibilitando a castração e o recalcamento do objeto
originário do desejo, tornando-o inconsciente. Conseqüentemente, o indivíduo se
insere na linguagem, na tentativa de perpetuar o objeto perdido.
Segundo a psicanálise, a função do pai na relação Edípica é estruturante
do ponto de vista inconsciente, sendo uma função simbólica. É a metáfora
paterna, através do significante Nome-do-pai, que atualiza a castração e
permite o sujeito simbolizar e estabelecer o ordenamento psíquico.
Quando ocorrem as falhas daquele que poderia dizer não, no corte que
possibilita o indivíduo a falar, o corpo passa a falar. O corpo como o rascunho
das emoções, expressando as angústias e marcas da história de vida do sujeito. O fato de o psíquico repousar sobre o
orgânico facilita o desencadear de patologias.
.Com a
sua dificuldade em simbolizar, o corpo adoece e expressa os sofrimentos
vivenciados, observando-se que “faltam palavras a palavras” (Merlet, 1990,
p.23), e o corpo fala.
Para o indivíduo, a elaboração da imagem do seu ser se estabelece no
estágio do espelho, ocorrendo uma identificação a partir de uma transformação
produzida no sujeito, construindo uma imagem de si próprio.
O ser humano ao nascer encontra-se estruturado em um universo humano,
social e cultural com toda uma rede simbólica, que é introduzida no bebê
através da mãe. O sujeito se insere nesta rede de significante a partir das
sínteses dialéticas, estabelecendo a condição de eu. Porém, a forma da
instância do eu se situa antes de estabelecer a sua posição no social.
A imagem construída pelo sujeito é regulada pelo olhar de seu ser na
relação com o outro, e constantemente é solicitada a confirmação do seu valor.
Inicialmente a criança busca satisfazer o desejo da mãe, supondo qual
imagem ideal, e estabelecendo uma demanda de amor. (Lacan, 1966)
Posteriormente, é a sociedade
que estabelece o padrão de beleza ideal. A relação do sujeito com o corpo
modificou-se no decorrer da história da humanidade, havendo também diferenças
culturais. Visando se inserir no contexto social, o indivíduo procura atender
as expectativas da imagem ideal, aproximando-se dos padrões de beleza
pré-estabelecidos culturalmente.
No mundo contemporâneo, há uma ambivalência relacionada à corporalidade
e a alimentação, propiciando o surgimento de conflitos.
A sociedade atual caracteriza-se por oferecer uma fartura em relação
aos alimentos, mas, contraditoriamente, exige como o padrão de corpo ideal, o magro.
Dessa ambigüidade, surgem os conflitos, propiciando maior possibilidade de desencadear
sintomas, tais como a bulimia, a anorexia nervosa e a obesidade .
O sujeito contemporâneo, ao perceber o próprio corpo e constatar que
não atende à expectativa social do padrão de beleza ideal, vivencia angústias e
conflitos, pois é captado por uma imagem para sempre inatingível.
Ao se perguntar o porquê o indivíduo
construiu um corpo obeso e verificar os motivos psíquicos que desencadearam a
obesidade cria-se uma possibilidade de se trabalhar as questões inerentes ao
ganho de peso. Ao se falar sobre as implicações inconscientes o sintoma perde
sua função. Se as questões psíquicas não forem trabalhadas, faladas, o obeso não
abrirá mão de seu sintoma, em virtude dos ganhos secundários no seu adoecer.
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