Anna Queiroz
No mundo contemporâneo, observa-se o aumento de adoeceres relativos à alimentação e à corporalidade, tais como anorexia nervosa, bulimia e obesidade.
Na história da civilização humana constata-se que a relação do sujeito com a comida e com o corpo sofreu alterações significativas, justificando o aumento das referidas doenças no tempo atual.
Conseqüentemente, é relevante compreender as transformações históricas referentes à alimentação e ao corpo para o ser humano, como possibilidade de entender o aumento dessas doenças na contemporaneidade.
A comida é o que garante a sobrevivência de qualquer ser vivo, justificando-se o significado que lhe é atribuído no reino animal. O ser humano desenvolveu, diferentemente de outras espécies animais, uma forma peculiar de se relacionar com o alimento no decorrer de sua história, tornando a culinária um aspecto relevante para a sua sobrevivência e na construção das relações sociais.
A alimentação está intimamente vinculada ao domínio do fogo, sendo este considerado um elemento transformador para a civilização humana (ARMESTO, 2004). Nos primórdios da história, não se sabia como acender o fogo, e a única forma de obtê-lo era adquirindo-o da natureza, ou de grupos que o possuíam. Ter o fogo era a garantia da sobrevivência, pois ele propiciava a luz e o calor; além de proteger contra as pragas e predadores (ARMESTO, 2004).
Calcula-se que a utilização do fogo para se cozinhar o alimento exista há aproximadamente 500 a 150 mil anos. Porém, o ato de cozinhar sistematicamente se deu há 30.000 ou 40.000 anos, revolucionando a sociedade. “A cultura começou quando o que era cru foi cozido, e as pessoas se reuniam ao redor da fogueira para comer” (ARMESTO, 2004, p. 24), com horários de se alimentar pré-estabelecidos.
A ritualização da alimentação propiciou a construção de grupos sociais e um maior entrosamento entre os indivíduos, estabelecendo as relações interpessoais. Outro benefício obtido com o domínio do fogo foi a manufatura de utensílios, que auxiliavam o homem a se proteger das ameaças do mundo externo. Segundo Freud (1930/2006), com “o mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição esmagadoras e impiedosas”, intensificou-se o agrupamento dos indivíduos como possibilidade de sobrevivência.
Porém, ao se estabelecer os vínculos sociais, emerge um impasse que permeia a natureza humana e seus instintos e a cultura, que é mediado pelo contrato social. As alternativas que visam conciliar a sociedade e o estado da natureza do homem são regras de funcionamento, com efeito normativo (ROUSSEAU, 1762/1999).
Ao se submeter às normas e regras sociais, propiciou-se a convivência social, porém perderam-se os instintos naturais, gerando no ser humano um mal-estar e uma insatisfação permanente, estabelecendo uma sensação de vazio e frustração. O que vai marcar a vida de cada um é o que vai se fazer com o mal-estar frente à perda e à castração (FREUD, 1930/2006).
Freud, no texto “A aquisição e o controle do fogo” (1932/2006), correlaciona o domínio do fogo com o controle da pulsão libidinal. O controle do fogo significa barrar os instintos sexuais, viabilizando inserir-se na cultura. O homem teve que, simbolicamente, apagar o “fogo” de sua excitação sexual.
Em decorrência da renúncia à pulsão sexual, procuraram-se outras formas de obtenção de prazeres e de consolação frente à perda do narcisismo primário, como a sublimação através de ideais culturais, religião e arte (FREUD, 1930/2006). O fato de o fogo transformar a comida mais viável de se comer e mais apetitosa, o alimento não mais atende apenas as necessidades nutricionais, mas torna-se uma fonte de prazer.
Observa-se também o alimento adquirir um valor simbólico, baseado em crenças. O prazer de comer, muitas vezes, é substituído por razões ideológicas (LINDERMAN & KESKIVAARA & ROSCHIER, 2000), e o conceito do alimento torna-se estereotipado, não correspondendo ao seu conteúdo nutricional. As condutas alimentares são uma fonte reveladora da identidade e da visão relativa ao mundo do sujeito (OAKES & SLTTERBACK, 2005).
Muitas culturas elegem a comida como sagrada ou profana. Na cristandade, o pão do trigo serve como refeição sacramental. Existem comidas consideradas diabólicas, como a maçã do paraíso (JACKSON, 1999).
A primeira investigação sistemática nutricional foi realizada pelo barão Justus von Liebig, em 1830, classificando os alimentos em carboidrato, proteína e gordura, dando base para as pesquisas nutricionais posteriores. As prioridades na cadeia alimentar no século XIX eram as proteínas e os carboidratos, no século XX, foram as vitaminas. Depois do ato de cozinhar, a produção sistemática do alimento foi uma grande inovação na história da alimentação, sendo significativa a agricultura, sistematizando o cultivo e a coleta de plantas comestíveis, e o pastoreio, como evolução da caça (ARMESTO, 2004).
A primeira criação de animal visando à alimentação foi a lesma, sendo uma criação fácil. Descobriu-se um depósito de lesmas de 10.700 a.C.. O pastoreio se caracteriza pela proximidade do animal que se come ao homem. Alguns animais apresentam instinto de rebanho, facilitando a formação do agrupamento, visando serem cuidados e protegidos de predadores. Nos lugares em que havia abundância de animais, muitos caçadores transformaram-se naturalmente em guardiões do rebanho, tornando-se pastoreios (ARMESTO, 2004).
Para alguns povos primitivos da Austrália, da América e da África, o sistema de base da organização social era o totemismo, que estabelece obrigações do indivíduo com o clã. O animal totêmico protegia os membros do grupo, e não poderia ser morto, apenas em sacrifício. O sacrifício e a ingestão do animal totêmico reforçavam a semelhança entre os membros da tribo e o Deus. A domesticação de animais e o advento da pecuária diferenciaram os animais sagrados. Primitivamente, todos os animais eram sagrados e não se podia comer sua carne, apenas com o sacrifício e ser ingerido na presença dos membros da tribo (FREUD, 1913/2006).
A carne está relacionada ao masculino e tem o significado de herói (JACKSON, 1999). O simbólico do alimento é representado pela conotação de poder e de agressão ao se abater o animal e ingerir sua carne (ROSS & PRATTALA & KOSKI, 2001).
O ser humano é encarado em muitos contextos sociais pelo o que ele come. Quando existia o antropófago, o canibalismo, a finalidade era obter força e poder, ocorrendo uma autotransformação (ARMESTO, 2004).
A dieta vegetariana é a demonstração de compaixão pelo sofrimento do animal abatido, que pode vir a se vingar futuramente. Os pitagóricos e órficos na Grécia antiga, ao não ingerirem carne, se isolaram dos demais da sociedade. Em Roma, a oposição às convenções, ao se defender em não comer carne, levou Sêneca e Ovídio a serem perseguidos (JACKSON, 1999).
Na agricultura, observa-se a coleta a ser substituída pelo cultivo, como possibilidade de se obter alimento. A agricultura surgiu da coleta de frutos e tubérculos das florestas, há aproximadamente 10.000 a 11.000 anos, e se caracteriza pela exploração de vegetais de forma sistemática e concentrada (ARMESTO, 2004).
A transformação dos cereais em produtos comestíveis foi uma das conquistas mais significativas da agricultura. Desde os primórdios da civilização, há aproximadamente 6000 anos, os grandes cereais alimentaram a civilização, tais como: o centeio, a cevada, o milhete (alpiste), o arroz, o milho e o trigo (ARMESTO, 2004).
A pecuária é vinculada ao masculino, o homem caçador e herói. Contrariamente, a agricultura é a representação da mulher, da feminilidade.
“Os homens entram em cena com o arado da transformação, que simula o ato sexual com a terra fêmea. A coleta é o trabalho da mulher, que se tornaram as senhoras dos campos e da abundância, e sacerdotisas do mistério do ciclo da vida” (JACKSON, 1999, p. 98).
Freud (1913/2006) correlaciona a agricultura com o fortalecimento da estrutura familiar patriarcal, e a possibilidade de se manifestar a libido incestuosa, havendo uma satisfação simbólica no cultivo da mãe terra.
Em determinado momento histórico, algumas pessoas controlam mais os alimentos, e a comida passa a ser um diferenciador social. Porém, o controle e o armazenamento de alimentos por alguns não foi a causa da desigualdade social, e sim a conseqüência (ARMESTO, 2004).
Na época dos caçadores e coletores, o tempo dedicado na obtenção de alimentos era demasiado. Com o desenvolvimento da agricultura e da pecuária, e com o estocar da comida, passa-se a ter mais tempo para se dedicar a outras atividades. A elite política, que tem o controle dos alimentos, visa lucrar, criando taxas na comercialização dos gêneros alimentícios produzidos por outros, e passa a se envolver em tempo integral em atividades políticas, solidificando mais o seu poder (DIAMONT, 2005).
A abundância de comida é um sinalizador de prosperidade. Na América do Norte, o culto à abundância continua. Foi na época colonial que se correlacionou a fartura alimentar com a riqueza, como forma de protesto ao passado, cuja fundamentação religiosa se baseava no evangelho puritano da poupança (ARMESTO, 2004).
Após o advento da Revolução Industrial, com o final do Feudalismo e o início do Capitalismo, a alimentação sofreu uma modificação significativa. A ascensão da burguesia levou a um “aburguesamento” da culinária. A nova culinária abandonou o exotismo da comida, transformando os cardápios requintados da nobreza em algo mais trivial, tornando mais acessível os alimentos (ARMESTO, 2004).
A alimentação se adapta aos modelos estabelecidos pela indústria. Os horários das refeições se moldam ao novo estilo de vida, denominado “industrialização do comer”. As refeições tornaram-se mais rápidas; os pratos preparados fora de casa, em decorrência da distância entre o trabalho e a moradia. Assim, os hábitos alimentares e a cozinha materna perdem o seu significado e o seu valor. A racionalização e a mecanização dos trabalhos refletiram-se nos hábitos alimentares e nas estruturas familiares e sociais. O ritmo de vida moderna levou à prática de refeições mais simples (FRANCO, 2006).
Surge o fast-food, que se caracteriza pelo alto grau de racionalização, e tem como paradigma o processo de maximização da produtividade. Utilizou-se do modelo da linha de montagem linear de Henry Ford na elaboração das refeições, e a preparação da comida é realizada em cadeias. O primeiro estabelecimento a adotar a simplificação e homogeneização dos processos culinários e dos cardápios foi em Pasadena, Califórnia, em 1937, pelos irmãos Dick e Mc Macdonald’s. Este processo de elaboração e realização da alimentação foi denominado “Mcdonaldização” (FLANDRIN, 2007).
Um dos traços da “Mcdonaldização” é a “comida Fusion”, cuja característica não mais se baseia em uma culinária criativa e exótica, e sim na praticidade. A comida fusion é a culinária de blocos de lego, se assemelhando a uma linha de montagem linear (ARMESTO, 2004).
Com o aumento do fast-food, e com a refeição delivery, o sujeito contemporâneo tem mais acesso aos alimentos e maior facilidade em adquiri-los. Ocorre nos dias atuais um comer individualizado, perdendo-se a ritualização das refeições, fazendo que se coma mais, aumentando a possibilidade de ganho de peso (SANT’ANNA, 1995).
Atualmente, há uma ambivalência relacionada à alimentação e a corporalidade, propiciando o surgimento de conflitos. O mundo moderno se caracteriza por oferecer uma fartura em relação aos alimentos, mas, contraditoriamente, exige como padrão de beleza ideal a magreza. Assim como na alimentação, os paradigmas sobre o ideal do belo sofreram alterações no decorrer da história, refletindo-se na relação do sujeito com o seu corpo.
A imagem inconsciente do corpo ocorre no estágio do espelho, a partir de transformações produzidas no sujeito, ocasionando a identificação e a construção da imagem de si próprio. O sujeito é introduzido numa rede de significantes do universo humano, social e cultural através da mãe, e, a partir de sínteses dialéticas, se estabelece à condição do seu eu e a sua posição no social. A imagem construída é regulada pelo olhar de seu ser com o do outro e é solicitada a confirmação de seu valor (LACAN, 1949/1998).
Posteriormente, é a sociedade que estabelece o modelo de corpo ideal. A rede de significante em que o sujeito se insere socialmente, estabelecendo o que é ideal e o que é belo, modificou-se na história da civilização humana e se diferencia culturalmente.
Nas palavras de Eco: “belo, junto com o gracioso, o bonito, o sublime, o maravilhoso, o soberbo e as expressões similares, é um adjetivo que usamos, freqüentemente, para indicar algo que nos agrada. Parece que, nesse sentido, aquilo que é belo é igual aquilo que é bom e, de fato, em diversas épocas históricas criou-se um laço entre o Belo e o Bom.” (ECO, 2007a, p.9).
Segundo Freud (1930/2006), a beleza está correlacionada a um impulso inibido, e tem por finalidade a atração do objeto sexual. O belo não está associado particularmente aos órgãos genitais, mas a caracteres sexuais secundários. A preocupação com a beleza e a estética é um objetivo de vida que visa compensar o sofrimento do ser humano, principalmente frente à perda dos impulsos instintivos em decorrência do emergir da civilização.
Na Grécia antiga há uma dicotomia entre corpo e alma. A alma intelectiva é superior e o corpo é sua prisão. Platão (2005), em 427 a.C., salienta que na juventude a admiração é pela beleza física, mas posteriormente descobre-se que a beleza da alma deve ser reconhecida mais preciosa que o corpo. Porém, o corpo deve ser cuidado através da educação física rígida, pois um corpo saudável permite a alma concentrar-se na contemplação das idéias. Sócrates enfatiza que a morte é a única libertação da alma espiritual do cárcere corpóreo. Na tese Socrática-Platônica a “dimensão biológico-cultural é o maior obstáculo no caminho da perfeita realização espiritual” (UBALDO, 2006; p. 60).
O valor estético da Grécia antiga baseia-se na beleza psicofísica, harmonizando corpo e alma. Enfim, é a beleza das formas e a bondade da alma (ECO, 2007a).
A medicina tem seu berço na Grécia clássica, a partir dos estudos de Hipócrates sobre o corpo humano, desenvolvendo a teoria denominada corpo hipocrático, fundamentando o estudo médico da antiguidade. Na Roma antiga, foi Galeno, médico oficial no império de Marco Aurélio e Cômodo, que realizou pesquisas significativas na medicina, baseando-se nos trabalhos de Hipócrates (ROUSSELE, 1983).
No Império Romano, o ideal era o serviço público e o exército, não havendo tempo viável para a conservação do corpo. O cidadão Romano vivia praticamente ausente de sua residência, e não tinha disponibilidade de se dedicar às atividades físicas e a uma alimentação adequada, sendo também prejudicado o dormir satisfatoriamente. Conseqüentemente, é atribuída ao médico a função de definir o regime ideal, visando a conservação da saúde, baseado nas condições de vida que a rotina diária impunha (ROUSSELE, 1983).
Observa-se que o ideal do cidadão da Grécia clássica e do Império Romano se diferenciam, refletindo na postura do sujeito com relação ao seu corpo. Segundo Freud (1921/2006), quando o indivíduo se integra em uma massa, ocorre o desaparecimento da personalidade consciente, prevalecendo o inconsciente e as idéias. Este processo se estabelece em decorrência de sugestão e contágio. No ideal do EU há uma identificação do EU por um objeto exterior. A eleição de um caudilho facilita o processo identificatório, podendo este ser a Igreja, o Estado, ou o Exército, influenciando a postura do sujeito na vida, e na sua relação com o corpo. Na Idade Média é a Igreja que cumpre a função do objeto de identificação.
Na Idade Média, o corpo era sinal de pecado. Devia-se mortificar a carne por meio de jejuns e controlar os próprios desejos. Também eram utilizadas abstinência, e flagelações, chicoteando-se. Nesta época observam-se casos de anorexia sagrada, como Clara de Assis, que recorria a jejum para se purificar e se aproximar de Deus, ou Santa Catarina de Siena (ARANHA, 1988).
A sociedade feudal se caracterizava pelo contraste social, entre o senhor feudal e os servos. Com relação à estética, procurava utilizar-se de ornamentos que definiam a classe social em que o indivíduo pertencia. O sinalizador de poder e riqueza, que era considerado belo, era a utilização de roupas coloridas, jóias e pedras preciosas. As armas e armaduras também eram acessórios valorizados. O padrão de beleza feminino era o angelical, como expressão da inocência sexual, em decorrência do moralismo medieval (ECO, 2007a).
Na alta Idade Média, tendo com Santo Agostinho seu principal pensador, emerge o neoplatonismo, sendo um movimento em que as interpretações religiosas tentam se fundamentar em pensamentos racionais de Platão (ARANHA, 1988).
Com o final da Idade Média e o início da Idade Moderna, há a passagem do feudalismo para o capitalismo, ocorrendo a ascensão de uma nova classe social, a burguesia, ocasionando quebra de paradigmas em vários aspectos da sociedade, atendendo a nova demanda da classe social emergente (WEBER, 1920/1967).
Na Idade Moderna há uma dessacralização do corpo. Segundo Descartes, no século XVII, o corpo é um objeto, assemelhando-se a uma máquina, apresentando leis próprias. A composição do corpo se baseia em duas substâncias distintas: a pensante, de cunho espiritual; e a externa, que é de natureza material (UBALDO, 2006). No renascimento, Leonardo da Vinci realiza estudos de anatomia visando à elaboração de suas pinturas (ARANHA, 1988).
Esta nova visão sobre o mundo, dessacralizada, retira os componentes religiosos dos pensamentos. O corpo passa a ser objeto da ciência, e entre os séculos XV e XVI a beleza é a imitação da natureza, segundo regras científicas, e é observada a tendência da beleza sensual (ECO, 2007a).
Com as mudanças dos costumes com a ascensão da burguesia e a reforma protestante, a mulher se torna dona de casa e administradora do lar, e o belo se associa ao útil e aos acessórios práticos, contrastando a beleza requintada da nobreza (ECO, 2007 a ). No século XVI, o espelho passa a ser utilizado (ARIS & DUBY, 1987).
Baruch Spinoza (2008), no século XVII, contrapondo a teoria de Platão relativa dicotomia corpo e alma, afirma não haver uma causalidade ou hierarquia entre o corpo e a mente, e enfatiza que em alguns momentos tanto a alma como o corpo é passivo ou ativo.
O século XVIII se caracteriza pela dialética entre as classes sociais, a burguesia ascendente e a nobreza; e o confronto da razão iluminista de Kant e do obscurantismo de Sade. Neste movimento dialético, emerge como padrão de belo o rigor estético associado à liberação (ECO, 2007a).
Também é valorizada a beleza romântica, expressa na obra de Shakespeare. Contraditoriamente, Rousseau se revolta e expõe a realidade de forma cruel, revelando um mundo estreito e frio, e Hegel enfatiza o refugio ilusório do romantismo e a sua tendência à negação do real (ECO, 2007a).
O século XIX é denominado a idade da burguesia. Neste momento, a classe emergente assume o seu lugar de poder e estabelece definitivamente seus paradigmas, e a nobreza se adapta aos valores burgueses. A beleza estética permeia entre luxo e função, espírito e matéria. O belo passa a ser associado ao valor, em uma sociedade que é norteada pela comercialização. O ideal estético se vincula ao objeto comercial (ECO, 2007a).
Após a Revolução Industrial, surge uma tendência em harmonizar a natureza, as metrópoles e a produção industrial em série com produtos artesanais. Há uma tentativa de oposição ao artificialismo, mas o que se observa é uma beleza estética ser substituída por algo funcional e em série (ECO, 2007a).
Na sociedade pós-industrial, há a diferenciação entre a elite e a classe trabalhadora. A classe média e os intelectuais se preocupam com a beleza estética, e o operário tem sua identidade no traço identificatório de trabalhador. Observa-se a existência da imagem do corpo prazer no grupo da elite urbana, e a imagem do corpo trabalho nas camadas populares (COSTA, 1989).
Com relação à classe social e a alimentação, ocorre uma diferença entre os gêneros alimentícios predominantemente ingeridos, de acordo com o grupo cujo indivíduo pertence. Atualmente, na classe operária os alimentos mais consumidos são os carboidratos, enquanto na classe de elite se prioriza verduras, legumes e alimentos consideráveis saudáveis, podendo se denominar este contraste de conduta alimentar de “hierarquização social dos alimentos” (ARIS & DUBY, 1987, p. 319). Outra tendência atual é a utilização da alimentação com o objetivo de beneficiar a saúde. A comida sendo encarada como remédio diminui o seu significado simbólico.
Após a ascensão da burguesia, com a Revolução Industrial, houve uma generalizada comercialização das coisas, lhes atribuindo um valor no mercado; daí, a busca de se conseguir a beleza idealizada gerar uma indústria do corpo, foi um passo, e às vezes com um custo só acessível à elite das classes sociais, o que tornou também a beleza um objeto de consumo. Porém, o consumismo atual não se baseia no protestante produtor e acumulador da teoria Weberiana, mas na tese apresentada por Campbell, em a Ética romântica e o espírito do consumismo moderno, baseado no sentimentalismo (COSTA, 2005).
No mundo atual, a beleza é divulgada pela mídia. O corpo, principalmente o da mulher, deve ser modulado para atingir o padrão ideal através de dietas, vitaminas, ginástica, cirurgia plástica, etc. Enfim, alternativas que criam a fantasia de controle do corpo (ROBELL, 1997), propiciando o aumento de academias de ginástica, por exemplo.
A medicina na modernidade é um outro recurso utilizado pelo indivíduo, para se obter uma nova forma física. Historicamente, a medicina se ocupava unicamente com o bem estar físico, sendo mais evidente a importância do cidadão ter o direito a saúde a partir do século XX (COURTINE, 2008). Com a preocupação excessiva relativa a imagem corporal, demandou-se da área médica o desenvolvimento e aperfeiçoamento de técnicas e de intervenções cirúrgicas, com o objetivo de moldar o corpo, visando aproximar-se da silhueta considerada ideal.
A busca constante pela imagem física perfeita faz com que se acentue a procura de recursos com este objetivo, tais como ginástica ou intervenções cirúrgicas. Porém, o sujeito contemporâneo, apesar de utilizar-se das estratégias existente, ao perceber o próprio corpo e constatar a inviabilidade de atender à expectativa social do padrão de beleza ideal, vivencia angústias e conflitos, pois é captado por uma imagem para sempre inatingível, e é o meio de comunicação que estabelece os padrões de belo. Surge a tendência denominada beleza da mídia, ou beleza do consumo (ECO, 2007a).
Visando se inserir no contexto social, o indivíduo procura atender às expectativas da imagem ideal, aproximando-se dos padrões de beleza pré-estabelecidos culturalmente, mimetizando-se. Porém, atualmente constatam-se algumas tendências de estilo na tentativa de não se enquadrar tão rigidamente aos paradigmas de beleza determinado socialmente. Como enfatiza Umberto Eco, “hoje em dia se convive com modelos opostos, o feio e o belo, não tem mais valor estético: feio e belo seriam duas opções vividas de modo neutro” (ECO, 2007b, p. 426).
Do paradoxo existente em atender a demanda social de beleza ideal e a conservar a singularidade corporal, o sujeito, ou adota um padrão de uniformidade, se adequando a moda vigente, ou estabelece uma postura de indiferença com relação ao outro, acentuando-se uma posição narcisista (ARIS & DUBY, 1987).
Atualmente, constata-se uma predisposição a deixar de perceber a identidade física no olhar do outro, e a contemplar o corpo no espelho, podendo-se denominar este momento como “estágio” histórico “do espelho” (ARIS & DUBY, 1987). “Basear a identidade no narcisismo significa dizer que o sujeito é o ponto de partida e chegada do cuidado em si” (COSTA, 2005, p. 185), e que o próprio corpo é o objeto de amor (FERNANDES, 2003), refletindo-se na dinâmica identitária.
Na sociedade contemporânea, com o processo de globalização, houve um enfraquecimento das instituições, como o estado, a igreja ou o exército, que antes eram objetos de identificação. Paralelamente, o discurso científico enfatiza a importância do corpo. Conseqüentemente, o valor que anteriormente era investido nas virtudes públicas e privadas, atualmente é concedido ao corpo, levando a um “advento da cultura somática” (COSTA, 2005, p.192).
Com relação à alimentação na sociedade pós-industrial, constata-se que a aproximação do ser humano ao lado da fogueira e da mesa comunitária se perdeu, sofrendo alterações significativas, ocorrendo um processo de simplificação da cozinha e uma dessacralização da refeição em família (FRANCO, 2006). Porém, há movimentos que tentam resgatar o primitivismo, como a moda da comida crua, que é um protesto e uma rejeição à idéia industrial da comida (ARMESTO, 2004). Apesar de todo o desenvolvimento tecnológico, observa-se a necessidade do sujeito resgatar a sua origem instintual, e tentar recuperar o que perdeu, ao se inserir na civilização, o seu estado narcísico (FREUD, 1914/2006).
A constatação do aumento dos transtornos alimentares (anorexia, bulimia e compulsão alimentar) e a obesidade se justificam como uma possibilidade de protesto do sujeito contemporâneo em não ser apenas uma peça da engrenagem de uma máquina, após a Revolução Industrial, e não perder sua singularidade, tendo que atender à demanda da moda.
Os adoeceres relativos à comida e a corporalidade na contemporaneidade são a manifestação de revolta e uma tentativa do ser humano deixar o lugar de objeto alienado e passar a ser sujeito desejante, e uma reação às imposições pré-estabelecidas socialmente. Porém, a importância do outro na vida do sujeito ainda é algo de grande magnitude, pois o ser humano possui a necessidade de ser olhado e aceito pelo social, tendo sempre uma demanda de amor (COSTA, 2005). O estilo de ser, igual ou o negativo do padrão de beleza vigente, ainda continua ser em decorrência do outro, do culturalmente definido como ideal.
Em um determinado momento histórico, Freud (1930/2006) considera o culto à beleza como forma de amenizar e compensar o sofrimento humano, decorrente da inibição dos instintos ao se inserir na civilização. No mundo contemporâneo, da ambigüidade relativa ao alimento e à corporalidade, emergem os conflitos , gerando uma maior vulnerabilidade psíquica.
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